A capoeira já viveu seus tempos de moda no Brasil, mas com o crescimento
de outras modalidades mais eficientes em um ringue de luta, como o
jiu-jitsu e o boxe tailandês, a luta que se mistura com dança no ritmo
marcado pelo berimbau ficou fora do “mainstream” da pancadaria. O
surgimento do MMA
(Mixed Martial Arts ou Artes Marciais Misturadas), esporte onde
dificilmente a ginga e a plasticidade da capoeira têm vez, também vem de
encontro à falta de um formato claro de competição, que fez com que a
capoeira viesse a perder espaço na mídia e no mundo da luta em geral.
Um dos maiores expoentes da modalidade, Beto Simas, ou Mestre Boneco, afirmou, em entrevista ao iG,
que a capoeira ainda está em estágio amador e que, para se desenvolver,
precisa unificar suas regras e torneios. De Los Angeles, na Califórnia,
onde vive desde 1999 e dirige o grupo Capoeira Brasil, ele, aos 49
anos, ainda vê a capoeira com força e grande quantidade de adeptos.
Porém, não sabe precisar o número nem mesmo dos alunos do seu grupo, o
Capoeira Brasil. A falta de um censo preciso é um dos problemas que
Mestre Boneco tenta resolver. Segundo ele, não há dados ou estudos que
possibilitem a “venda” de eventos da capoeira. Nos Estados Unidos, já
trabalhou com artistas renomados como Hale Berry, que treinou para o
filme “Mulher-gato”, e Brooke Shields. Entre os artistas brasileiros,
rasga elogios à “casca-grossa” Elba Ramalho e lembra que o mais difícil
de trabalhar foi o “frágil” Milton Nascimento.
iG: No Brasil, a capoeira chegou a virar moda, mas parece ter
perdido espaço para outro tipos de luta. Você acha que o crescimento do
MMA brecou a evolução da capoeira?
Mestre Boneco:
A capoeira teve uma época que estava
muito na mídia, até porque eu consegui entrar na mídia trazendo a
capoeira. Mas aí veio o MMA e o povo gosta de ver sangue. Começa a gerar
dinheiro e vira um grande atrativo. Para mim a capoeira é uma arte
ímpar, uma das que tem mais adeptos no país, apesar dos modismos, e não
tem apoio ou uma promessa de você ficar milionário, como o futebol, o
MMA. Então acho que é uma arte muito forte.
iG: É difícil ver um lutador de capoeira, por exemplo, disputando competições como os torneios de MMA. Isso interessa a vocês?
Mestre Boneco:
Na verdade, a proposta nunca foi entrar
nesse tipo de torneio, porque é mais do que uma luta. Mas pode muito bem
um capoeirista estar voltado só para a luta. O Anderson Silva fez
capoeira, acho que prepara muito bem. O MMA não é uma luta só, o cara é
um lutador profissional, tem de saber várias lutas. Existe competição de
capoeira, mas ainda é muito amador. Há competição de dupla, de contato,
mas temos de bolar algo melhor. Tem de bolar um formato de competição
de forma que não percamos a característica da capoeira. Senão vira
caratê ou briga, e não é isso, o contato tem de ser voltado para a
capoeira, é complicado. Quando o jogo fica duro na capoeira, o bicho
pega. Existem campeonatos, mas temos muito a aperfeiçoar ainda. Só no
Rio existem várias Federações, e por isso estamos criando uma comissão
de mestres para que possamos dar validade a um Programa Estadual de
Capoeira no Rio, estamos tentando fazer com que o nosso governador
aprove.
iG: Você já tem algo pronto em relação a essa proposta de regras?
Mestre Boneco:
Em relação a regras, tenho até muita
coisa escrita, inclusive já realizei alguns campeonatos internos no
Brasil e em Los Angeles. Mas, para fazer campeonatos abertos a outros
grupos, acho que seria interessante que fizéssemos regras com a presença
dos grupos com efetiva representatividade no mundo da capoeira.
iG: Como você ingressou na capoeira?
Mestre Boneco:
Acho que foi destino. Estava na praia do
Leblon num fim de semana, e vi um pessoal gesticulando, falando alto.
Aí eu conhecia dois deles e algo me levou a ir falar. E me disseram que
era capoeira, que haveria um evento e, se eu quisesse ir, era só pedir
autorização aos meus pais que eles me levariam. Eram mais velhos do que
eu, conhecia dois da rua. Aí fui e me apaixonei, nunca mais parei. Foi
em 1974, 75, estou com 49 anos hoje. Eu queria viver disso, não sabia
como faria, mas queria viver disso.
iG: Quantos alunos tem o grupo?
Mestre Boneco: São 70 instrutores espalhados pelo
mundo, mas não sei dizer exatamente quantos alunos. Estamos fazendo esse
censo agora, trabalhando em um recadastramento. Sei que é muita gente.
São três fundadores do meu grupo, o Capoeira Brasil, o Mestre Paulão,
Mestre Sabiá e eu. Cada um tem um núcleo muito grande, aqui nos Estados
Unidos, na Austrália, na China, na Europa, estamos espalhados no mundo
todo. Se eu disser um número, estou chutando.
iG: Quando você foi para Los Angeles?
Mestre Boneco:
Mudei em 1999, foi uma loucura, queria
colocar a capoeira no cinema, fiquei empolgado e vim. Já trabalhava com
capoeira há muitos anos, estava um pouco cansado de dar aulas. Já fiz
televisão na década de 90, aí fiquei animado. Queria estudar aqui, não
era nem para dar aula, mas acabei abrindo uma academia, não teve jeito.
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Beto Simas com Brooke Shields na década de 80, quando fez participação em filme da atriz |
iG: Você criou um grupo de dublês para cinema, correto?
Mestre Boneco:
Tenho uma rapaziada aqui que faz muito
videoclipe, faz filme, preparei a Halle Berry para fazer a mulher-gato, o
Robert Rey (Dr. Hollywood) também foi meu aluno... Teve a Alanis
Morissette que me procurou. Dei aulas, mas não foi na academia, foi na
casa dela. Mas esse pessoal é muito ocupado, viaja muito, acaba que o
treino não tem aquela consistência.
iG: E desses artistas, quem foi o mais chato e o mais dedicado?
Mestre Boneco:
O mais difícil de trabalhar acho que foi
o Milton Nascimento. Ele é muito frágil e a aula tinha de ser com muito
cuidado, o trabalho foi muito delicado. A Halle Berry foi bem dedicada,
mas quem é casca-grossa mesmo é a Elba Ramalho. Ela é boa, tinhosa, não
é mole não. Trabalhei também com a Brooke Shields quando fiz uma
participação em um filme na década de 80.
iG: Falando como empresário, como você enxerga o mercado para a capoeira?
Mestre Boneco:
Na verdade, o mercado é muito grande e
muito próspero, estamos trabalhando justamente para melhorar esse campo.
Uma coisa que já complica é que cada grupo tem uma graduação
independente. E isso dificulta na hora de buscar patrocínio. Estou
buscando uma unificação. Tenho um projeto de reestruturação do meu grupo
que estou abrindo para todos os outros. Quando você busca um
patrocínio, o cara quer dados e não há. O cara quer um censo, quer saber
como são as graduações, ainda soa como algo meio amador. Há grupos
profissionais, eu sempre vivi da capoeira e não vivo mal.
iG: Você considera a capoeira uma luta de fato ou uma dança? O que é a capoeira, na sua visão?
Mestre Boneco:
Essa é a grande dificuldade para a
capoeira crescer, porque ela é tudo isso junto. É dança, é luta, é
brincadeira, é arte, é cultura, é acrobacia, é música, ritmo, tudo isso.
Então temos de definir, estava debatendo isso no Rio. Temos de
apresentar um projeto ao governador. A gente quer que ele homologue uma
comissão que estamos formando para poder decidir quem pode dar aula ou
não e outras coisas, como essa definição do que é a capoeira, porque
isso interfere em todo o resto. Uma luta é só luta, cultura é só
cultura, aí vão por esse viés, mas a capoeira é tudo isso.
iG: Dá para perceber maior dificuldade dos americanos para aprender a ginga ou é a mesma coisa?
Mestre Boneco:
Essa história é papo. Tenho uma aluna
aqui em Los Angeles que passa fácil por brasileira. E o mais legal aqui é
que Los Angeles é uma cidade muito segregada. Tem área do negro, do
latino, do asiático, mas a capoeira é uma mistura. A gente até saiu em
uma matéria no L.A. Times por causa disso. Fizemos um documentário, que
consegui vender para a televisão no ano passado, mostrando a capoeira no
mundo tudo. Então fomos em várias cidades. Em Israel, foi muito legal,
colocamos judeus e palestinos, que se matam, jogando capoeira, batendo
palmas, se abraçando na maior harmonia. A capoeira é um instrumento de
transformação.
iG: Como funciona essa questão dos apelidos? Qual é o critério para a escolha e porque resolveram chamar você de Mestre Boneco?
Mestre Boneco:
O meu foi porque eu era da zona sul, no
meio daquela negrada toda, a capoeira ainda era discriminada e tinha
poucas pessoas claras, de cabelo escorrido... Aí quando cheguei, falaram
logo: “Ah isso aí é boneco! O que está fazendo aqui?”. Mas a
dificuldade faz a gente crescer. Os apelidos são da época que a capoeira
era proibida, então os capoeiristas tinham apelidos para manter o
anonimato. Por mais que a capoeira evolua, queremos manter a tradição.
Fonte : http://esporte.ig.com.br/lutas/