O Pernambucano João Francisco dos Santos (1900-1976), o mítico Madame
Satã, era uma espécie de bandido chique. Dizia ser filho de Iansã e
Ogum e devoto da cantora americana Josephine Baker. Homossexual assumido
em plenos anos 30, ele reinava como camareiro, cozinheiro,
transformista, leão-de-chácara e ladrão no submundo da Lapa, bairro
boêmio do Rio de Janeiro. Negro, pobre e analfabeto, João dos Santos
ganhou o apelido de Madame Satã por causa de uma fantasia que usou no
bloco carnavalesco Caçadores de Veados em 1942.
Madame Satã foi especial pela infinita capacidade de
transformação. Nunca aceitou um único papel. Homossexual, se vestia com o
chapéu de panamá e linho apurado de bom malandro, a despeito das
sobrancelhas feitas. Jamais admitiu homem se casar com homem e chegou a
ter rumorosos casos com meninas de 12 anos. Lutador, viveu quase 28 anos
preso em lendária tranqüilidade. Negro, usava os cabelos longos e
alisados e comprava briga para ir aonde bem entendesse.
Para entender quem foi Madame Satã, é preciso compreender quem
foi João Francisco dos Santos e o que foi a Lapa dos anos 30,
território-livre da malandragem que resistiu ao bota-abaixo do Centro do
Rio, promovido pelo prefeito Pereira Passos. O desmanche de morros, a
abertura de avenidas e a demolição de cortiços foi uma tentativa de
assepsia da capital federal que, no início do século 20, contava com 800
mil habitantes, 200 mil deles desocupados de todas as espécies, de
baleiros a biscateiros, desempregados, rufiões, prostitutas e jogadores
de capoeira, entre eles o próprio João dos Santos.
Foi nesse tipo de ambiente que surgiu Madame Satã. Vinte anos
depois da Abolição, o menino trabalhava como escravo em Itabaiana, na
Paraíba, antes de fugir para o Rio. Depois passou para as mãos de
Catita, uma cafetina de 180 quilos que comandava um dos bordéis mais
animados da cidade e tornou-se freqüentador de célebres bares e cabarés
da mitologia carioca: Colosso, Capela, Imperial, Bahia, Apolo, Royal
Pigalle, Viena Budapest, Casanova e Cu da Mãe. Era um tempo de uma
marginalidade pré-industrial, com raras armas de fogo, quando um negro
forte podia criar fama no tapa e na navalha, antes de se lambuzar com um
"boneco" de cinco gramas de cocaína comprado na farmácia mais próxima.
Ao todo, João Francisco contabilizou 27 anos e oito meses de
cadeia, 29 processos, 3 homicídios e cerca de 3 mil brigas. Ágil lutador
de capoeira e mestre no manuseio da navalha – contam que ele sempre
trazia uma presa na sola do sapato –, Madame Satã só recorria ao
revólver em situações extremas, a exemplo da vez em que desfechou um
tiro num soldado, na esquina da rua do Lavradio com a avenida Mem de Sá.
Na famosa entrevista concedida ao histórico tablóide O Pasquim, em
1976, com seu deboche habitual o malandro afirmou ter sido preso
injustamente, alegando que a arma disparara de forma casual. “A bala fez
o buraco, quem matou foi Deus”, afirmou. Dizia que não brigava, se
defendia.